segunda-feira, 18 de outubro de 2010

o casal ao lado


O que mais me incomodava não eram os gritos, o estalar dos tapas, ou a guarda da cama batendo na parede nem os solavancos do lustre, mas sim o silêncio pós orgástico. Aquele momento que eles deveriam estar abraçados, respirando juntos, compondo o pequeno musical do amor jovem e intenso, crente e eterno, de cheiros, carícias e luzes coloridas aos olhos fechados. Isso sim me incomodava demasiado, fazia instintivamente com que eu acendesse um outro cigarro na brasa quase instiguída do último trago. Esse era meu momento maior de pseudo comunhão com o casal. Imaginava-os largados nos lençóis ensopados arfando de espanto e tesão ainda, acendendo um cigarro cada um também e nesse ponto éramos um trio de pura paixão, fortaleza e distância.
Nesse dia, particularmente intrigante, algo me fez sentir diferente, talvez por ser uma terça-feira, meio da madrugada e o casal ainda fazia amor freneticamente, talvez pela amareles de meus dedos indicador e médio que nesse dia justo estavam ainda mais amarelo... por minha geladeira especificamente vazia de alimentos, insumos e acepipes afins. Somente alguns litros de vodka, cerveja, vinho e amendoins, apesar da diabetes, da pressão alta e da trombose e contando com toda sorte de venenos etílicos culpar o amendoim era um capricho. A lâmpada do banheiro acesa, única que funcionava na casa, trazia ao ambiente um sépia de aterrador a sufocante, trincando os vidros da janela e arranhando as unhas nas paredes.
Compadeci-me de minha degradação. Senti um nó na garganta e um aperto no peito, preciso desfazer esse estrangular. Servi-me de uma boa dose de vodka geladíssima, espremi meio limão na bicha e dei um choro de vinho para colorir a translucidez da consciência, mergulhei de um trago só e peguei uma cerveja. Cerveja de garrafa que lata é coisa de jovem. O panorama da sala era verdadeiramente aterrador, uma angústia que pairava no ar tão densa que poderia ser cortada a faca, mas mantendo o armamento no coldre, transgredi o recinto sento-me novamente. Percebi meu short encardido e puído, desci pelas pernas murchas e secas, estilhaçadas de exposição ao tempo e ao desequilíbrio emocional. Demorei um pouco na análise de meus calcanhares roxos e inchados, as unhas farinhentas e horrendas, de um amarelo lavado, quase branco, mas ainda sim amarelo.
Tantos lugares essas pernas passaram que não caberia num planeta, tantas aventuras mentais e meta físicas que num dicionário estariam no Z. Quando o silêncio corrosivo de meus vizinhos imperou, abri minha garrafa com a parte detrás do isqueiro e servi-me fartamente direto no gargalo. Encontrei um momento meio satisfatório até, parecia um perfume que passava pelas cortinas ressequidas da imaginação. Acendi outro cigarro e na intemperança do exato momento detive-me um pouco, mas que lugar estupendo esse. Recostei bem confortável no sofá, o peito apertava de verdade e o coração parecia que ia explodir, alcancei as pílulas da pressão na mesinha e engoli com outro gole farto no gargalo. Deixei-me ficar no torpor alguns segundos.
O braço foi pendendo e adormecido ficava cada vez mais flácido e pesado, deixei escorregar e apoiei o cotovelo contra uma almofada rota. Sentia a garrafa escorreganto muito lentamente da minha mão, tentava aumentar a pressão para rete-la, mas era impossível. O nó do peito foi apertando cada vez mais, lembrei das pílulas para circulação na cabeceira da cama no quarto e não conseguia me mexer. A garrafa escorregava, o nó apertava o braço dormia. Vai cair, vai cair, vai cair... infinitamente meu cérebro repetia a informação para minhas mãos doentes, irrelevante informação. Senti somente o líquido gelado, fervendo seu gás na sola dos meus pés e o torpor pleno absoluto dos que morrem de morte implorada, a satisfação dos que alcançam a realidade.
Encontraram-me dias depois, completamente roxo, em estado de putrefação, cagado e mijado, uma garrafa de cerveja caída aos pés e os comprimidos que achava que tinha tomado nas mãos. O cenário degradante era amenizado por um leve sorriso nos lábios que denunciavam alguma satisfação ou prazer. E era.
Obrigado Senhor, finalmente morri.

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